Os últimos dias de Tolstói, reúne alguns dos momentos mais
significativos da fase tardia do escritor russo, marcada por sua
conversão ao cristianismo e pela renúncia aos privilégios da aristocracia
e à carreira de romancista. Prefácio de Jay Parini
“Lembro-me da surpresa que senti durante a primeira leitura de Shakespeare. Esperei receber o grande prazer estético. Mas ao ler, uma após outra, aquelas consideradas as melhores dentre suas obras, Rei Lear, Romeu e Julieta, Hamlet e Macbeth, não só não senti prazer como experimentei a repugnância irresistível, o tédio e o receio de estar louco por achar insignificantes e francamente ruins obras consideradas o auge de perfeição por todo o mundo erudito, ou então o valor atribuído por esse mundo erudito às obras de Shakespeare é insensato.
Minha perplexidade aumentava porque sempre senti fortemente a beleza da poesia em todas as suas formas; por que, então, as criações de Shakespeare, consideradas por todo o mundo obras de arte geniais, não eram agradáveis para mim, mas repugnantes? Por muito tempo não confiei em mim, e durante cinquenta anos voltei várias vezes para me certificar, lendo Shakespeare em todas as possíveis formas: em russo, em inglês, em alemão na tradução de Schlegel, como me aconselharam; li muitas vezes, tanto dramas como comédias e dramas históricos, e inconfundivelmente experimentava o mesmo: a repugnância, o tédio e a perplexidade.”
Trecho de “Sobre Shakespeare e o teatro”
Em sua juventude, o conde Liev Tolstói (1828-1910) levava uma vida notavelmente desregrada, mesmo para os padrões dissolutos de sua classe social. Dado a frequentar bordéis, amante do jogo e da bebida, o aristocrático herdeiro de vastas propriedades no Volga não chegou a concluir os cursos de direito e letras orientais da Universidade de Kazan, onde se matriculou em 1844. Alistou-se no Exército em 1851. São dessa época seus primeiros textos literários. Após a experiência traumática da Guerra da Crimeia, viajou por diversos países da Europa, recebendo a influência marcante de Proudhon. Casou-se em 1862 com Sofia Behrs, com quem teve treze filhos e uma relação tumultuosa. Autor de romances como Anna Kariênina (1877) e Guerra e paz (1869), Tolstói já era comparado a gigantes como Goethe e Shakespeare quando se inicia a crise espiritual que culminaria com a publicação de Uma confissão (1882), livro-chave de sua conversão mística.
Traduzidos diretamente do russo, os ensaios, cartas, parábolas e fragmentos de obras de Tolstói reunidos neste volume, escritos a partir de 1882, pregam contra o hábito de se comer carne, contra o sexo sem fins reprodutivos, contra a excessiva cobrança de impostos, contra o patriotismo, contra o alistamento militar obrigatório e contra os dogmas e ritos das religiões que considerava como desvios da fé (ele foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa). No imaginário russo, Tolstói passou a ocupar o lugar de profeta e uma legião de seguidores, mendigos e oportunistas passou a se dirigir a Iasnaia Poliana, a grande propriedade rural de sua família. Seus famosos ensaios estéticos “O que é arte?” e “Shakespeare e o drama” completam o volume.
Os textos foram escolhidos por Jay Parini, autor do romance histórico A última estação: os momentos finais de Tolstói, que serviu como inspiração para o filme homônimo estrelado por Christopher Plummer, Helen Mirren e Paul Giamatti.
O Conde Liev Tolstói nasceu em 1828. Participou da Guerra da Crimeia e casou-se com Sofia Andrêievna Berhs em 1862. Enquanto Tolstói administrava suas vastas propriedades nas estepes do Volga, dava continuidade a projetos educacionais, cuidava dos servos e escrevia Guerra e paz (1869) e Anna Kariênina (1877). Uma confissão (1882) marcou uma crise espiritual em sua vida; ele se tornou um moralista extremista e, em uma série de panfletos, a partir de 1880, expressou sua rejeição em relação ao Estado e à Igreja. Morreu em 1910, em meio a uma dramática fuga de casa, na pequena estação de trem de Astápovo...