O que é resto, resíduo, e já foi central, o estado de restos de que a gramática não dá mais conta, porque é difícil dar ordem à desordem da desintegração, parece ser o tema duro contra o qual a língua poética de Patricia Peterle bate, como se bate a cabeça contra o muro de nossas obsessões: “persistência do esvaecer / insurgência do resto / sobrevivente a si próprio”. Se o eco da voz ausente, como diz certo poema, é o que fica, resta, sobrevive, então a ele essa poesia dará ouvido. Escrever poesia é, aqui, inventar a gramática, a sintaxe particular do eco, esse desintegrando-se da voz. […] Sondam-se as coisas mínimas; e que, por ilegíveis, pedem uma nova gramática? um desalfabeto? É a partir desses “sentidos em alerta” que o livro passa a ser atravessado por um tornado de mundo: sonda-se a fala dos bilhetes esquecidos no bolso, sonda-se a própria vida, esse estranho lugar onde “a mão coça os cabelos / os olhos desviam / os dedos se movem / os pés se mexem lá embaixo/ os pelinhos se arrepiam”. Onde “o infraordinário” entra em cena. Onde um corpo, mais do que passa, não para de passar, deixando cheiro nos lençóis e cegueira nos espelhos. Abertos assim os sentidos e as janelas da linguagem para tudo o que afirma a vida, vão entrando em cena novos parceiros, os outros que habitam esse mundo como nós: o vaga-lume, o joão-de-barro, a coruja-buraqueira, o beija-flor (“seu nervoso voo nas pencas / do sapatinho de judia”), a iguana, flores, limoeiros. Abrem-se os arquivos silvestres, de onde (parece que descobrimos a tempo) há tanto saber para se aprender. Para viver, para sobreviver. Sonda-se seu ilegível e indispensável saber, que pede desalfabetos.