Os estudos de grande abrangência sobre o futebol, ao abordar as questões políticas, sociais econômicas e comportamentais em torno do esporte, costumam deixar de lado o essencial: o jogo em si, aquilo que faz dele uma atividade capaz de apaixonar bilhões de pessoas dos mais remotos cantos do mundo.
O futebol, tal como foi incorporado e praticamente reinventado no Brasil, tem muito a dizer, com sua linguagem nãoverbal, sobre algumas de nossas forças e fraquezas mais profundas, ajudando a ver sob outra luz questões centrais da nossa formação e identidade.
Temas recorrentes na nossa melhor ensaística, como a “democracia racial”, o “homem cordial” e a deglutição antropofágica do influxo cultural estrangeiro, encontram aqui um viés inesperado e original como um corta-luz, um drible de corpo, um lançamento com efeito ou uma folha-seca — jogadas que os craques brasileiros inventaram ou desenvolveram, encontrando novos caminhos para chegar ao gol e à vitória.
Lançando mão de um sofisticado instrumental crítico que bebe na filosofia, na sociologia, na psicanálise e na crítica esté-tica, José Miguel Wisnik desce às minúcias do jogo da bola e de sua evolução ao longo das décadas.
Nas páginas deste nsaio, craques como Domingos da Guia, Pelé, Garrincha e Romário põem à prova idéias sobre o país de escritores como Machado de Assis, Mário e Oswald de Andrade, sociólogos como Gilberto Freyre, historiadores como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior.
O futebol, em Veneno remédio, não é mero “reflexo”da sociedade, mas tampouco se desenvolve à margem dela.
É, como mostra Wisnik, uma instância em que aslinhas de força e de fuga do embate social e da construção do imaginário se apresentam de modo ao mesmo tempo claro e cifrado, como costuma acontecer com as expressões artísticas.